O Choque de Ideias desta edição debruça-se sobre a seguinte questão: Deve o Estado financiar eventos e atividades religiosas?
SIM
Não existe um dever, mas o Estado pode financiar eventos e atividades religiosas. Os princípios da laicidade do Estado e da Liberdade Religiosa, constitucionalmente previstos e legalmente aflorados, exigem uma separação entre o Estado e as religiões. Assim, num Estado laico, como Portugal, não existem religiões oficiais, nem podem ocorrer interferências das Igrejas no Estado, nem do Estado nas Igrejas. Há autonomia e independência, o que não significa, por ora, que se ignore manifestações religiosas e corte absolutamente relações com as diferentes instituições religiosas. A crença assume, histórica e sociologicamente, uma relevância inegável nas comunidades, pelo que ignorar a sua existência seria olvidar a natureza humana.
Agora, num Estado laico e republicano, a decisão de apoiar ou financiar um evento ou atividade de cariz religioso deve obedecer a juízos de proporcionalidade, oportunidade, racionalidade económica, entre outros que se julguem oportunos, aliás como qualquer decisão que implique a mobilização de esforços públicos. Cabe à administração, a fixação apriorística de critérios, que permitam com a devida distância, isenção e justiça determinar se exato evento ou atividade, seja religiosa, desportiva, cultural, política ou associativa é digna de ser objeto de financiamento ou apoio por entidades públicas local, regional ou nacionalmente, com uma garantia essencial: a igualdade, materialmente concebida, de tratamento entre as diferentes religiões, procurando-se não favorecer alguma em detrimento de outras.
Em Portugal, é conhecido o peso e influência tradicional que a Igreja Católica tem no país, não fossem os laços seculares entre Portugal e o Vaticano e o facto de 80% da população se ter declarado como católica nos censos de 2021. O Catolicismo acaba, assim, por ser o maior beneficiário líquido de apoios do Estado, o que não nos deve preocupar, desde que as restantes religiões tenham a oportunidade, nas mesmas condições, de ser igualmente apoiadas.
André Abraão
Coordenador do Gabinete de Estudos Nacional
NÃO
A laicidade do Estado é o principal garante de liberdade e tolerância religiosa numa sociedade aberta. Por isso mesmo, sou tendencialmente favorável a um laicismo concebido no sentido estrito, numa dimensão essencialmente negativa. Primeiro, porque a religião é sobretudo uma crença, uma escolha individual, e como tal é uma questão atinente à esfera privada e não à esfera pública. O Estado deve intervir sobre direitos como a Educação, a Saúde ou a Habitação, que devem ser universais para todos os cidadãos. O Estado deve apoiar todas as atividades que promovam um fim inequivocamente público e o bem comum. Ora, o culto religioso, tratando-se de uma opção individual, tendo por base uma crença e um conjunto de normas e códigos morais, não se insere nessa definição.
Para nós, socialistas, que não dissociamos o valor da liberdade do valor da igualdade, poderia parecer razoável, porém, à primeira vista, defender uma intervenção do Estado assente na garantia da igualdade na prática do culto religioso como forma de assegurar uma efetiva liberdade religiosa, discriminando positivamente as confissões minoritárias face à maioritária. O problema é que a divisibilidade e a não universalidade do conceito, isto é, a multiplicidade de crenças e confissões religiosas, tornam muito difícil que o Estado assuma uma intervenção estruturada que consiga, com proporcionalidade e equidade, apoiar as manifestações religiosas de forma verdadeiramente justa e equidistante. Uma política sistemática de apoio do Estado às confissões religiosas é potencialmente perniciosa em muitos sentidos, desde logo porque, tal como a religião não deve interferir nos assuntos do Estado, o Estado também não deve interferir na religião, ao contrário do que as correntes mais associadas ao laicismo anticlerical sempre advogaram ao longo da história. Precisamente, por não devermos ignorar a dimensão histórica e cultural da religião nas sociedades, num país em que ainda existe uma maioria assumidamente católica e em que a Igreja Católica tem ainda uma influência preponderante em muitos meios, será difícil acreditar que os decisores públicos não se sintam tentados a privilegiar o relacionamento com a confissão maioritária, como aliás acontece.
O Estado não deve deixar de cooperar e de se relacionar com as confissões religiosas, mas essa cooperação não deve passar por apoios financeiros à religião ou à prática do culto religioso, mas por exemplo pela promoção do diálogo intercultural e religioso. Essa cooperação deve sempre garantir uma estrita e rigorosa igualdade de tratamento entre todas as confissões, sem regimes de exceção e privilégio para uma determinada confissão. E a melhor forma que o Estado tem de assegurar essa igualdade é não intervindo de maneira nenhuma no campo da religião. Não incluo nesta resenha, naturalmente, as atividades e instituições do Terceiro Setor que prosseguem fins sociais e que se encontram ligadas à Igreja, porque desempenham um papel importantíssimo na comunidade, dentro de um princípio de subsidiariedade, sobretudo quando e onde o Estado não tem capacidade de resposta. Exceção feita também para o acolhimento de eventos de grande dimensão internacional, com um contributo relevante para a Economia Nacional e para a imagem do país no exterior, desde que apoiados de forma equilibrada e proporcional.
Pedro Vasconcelos Almeida
Secretário Nacional para a Organização