Ricardo Gaio Alves, 52 anos, lisboeta, formado em ciências exactas. Fundou a Associação República e Laicidade em 2003, da qual é presidente da Direção desde 2009.
1. Considera que Portugal é um país verdadeiramente laico? Se não, porquê?
A Constituição de 1976 define um Estado laico, garantindo a liberdade de consciência, a igualdade entre os cidadãos, a separação entre o Estado e as comunidades religiosas e a não confessionalidade do ensino. Não contém qualquer referência religiosa.
Todavia, a prática política dos governos nacionais e regionais, das autarquias e de outros órgãos do Estado, tem sido clerical, mantendo o regime de privilégio da ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana), designadamente através da Concordata, e criando novas discriminações positivas, geralmente a favor dessa igreja.
2. Considera que o Estado e as Autarquias não deviam ter contribuído financeira e logisticamente para as Jornadas Mundiais da Juventude, mesmo tratando-se de um dos maiores eventos de sempre no nosso país?
A República não tem qualquer obrigação de financiar o culto (católico, evangélico, islâmico ou outro). Compete às comunidades religiosas encontrarem financiamentos de privados para os seus eventos. A justificação avançada antes destas jornadas para as apoiar – as eventuais receitas para o sector turístico da vinda de um milhão de estrangeiros a Lisboa – mostrou-se infundada (tanto quanto se sabe neste momento) dado que a receita gerada terá ficado abaixo das expectativas. Deste evento fica uma atitude de submissão simbólica e financeira do Estado aos interesses de uma comunidade religiosa, e uma tentativa de lavagem de imagem da qual as autoridades estatais não se distanciaram.
3. Entende que a liberdade religiosa deve limitar-se apenas à ausência de censura por parte do Estado em relação às diferentes crenças ou deve também o Estado criar condições para o exercício dessa liberdade religiosa? Por exemplo, considera que a Câmara de Lisboa não devia promover a construção da Mesquita na Mouraria, tendo em conta que existem sensivelmente naquela zona mais de 15.000 muçulmanos que exercem o culto num prédio de habitação, bastante degradado, sem quaisquer condições?
A Constituição impõe deveres ao Estado em matéria de saúde, educação, assistência social e também na promoção do acesso ao desporto e à cultura, deveres esses que se traduziram na criação de serviços nacionais e instituições estatais nessas áreas. Não existe, pelo contrário, qualquer obrigação constitucional de apoiar ou promover a religião, nomeadamente subsidiando a construção de locais de culto. Cabe às comunidades religiosas organizarem-se para construir locais de culto e assumirem as despesas respectivas.
4. Segundo um estudo do Eurobarómetro, em Portugal a discriminação religiosa é percepcionada como rara, quando para metade dos respondentes da União Europeia é considerada comum. Acredita que em Portugal existe um clima favorável à liberdade religiosa e uma boa convivência com as outras religiões (que não a católica)?
A situação portuguesa é diferente daquela do resto da Europa ocidental na medida em que a segunda maior opção religiosa é não ter religião. Esse grupo (crescente) de cidadãos queixa-se frequentemente da intrusão da religião maioritária nas suas vidas, nomeadamente nos media públicos, nas escolas estatais (entre outras situações, coação para frequentar EMRC, e cerimónias ou símbolos religiosos em escolas públicas) e noutras instituições públicas.
Não existem em Portugal conflitos entre comunidades religiosas, a prática religiosa é (felizmente) livre, mas nota-se um desfasamento crescente entre uma sociedade cada vez mais secularizada e um Estado que favorece a comunidade historicamente maioritária.
5. A vossa Associação lançou uma petição pela revogação da Concordata e apresentam cinco argumentos fundamentais. O primeiro tem que ver com a cláusula de livre criação, modificação e extinção de dioceses, paróquias e outras jurisdições eclesiásticas, que consideram ferir a separação entre o Estado e a Igreja. Porque consideram isso?
Nenhuma outra comunidade religiosa pode criar pessoas jurídicas com efeitos no ordenamento legal português por simples notificação aos serviços do Estado. Um exemplo é a «Fundação JMJ Lisboa 2023», criada por decisão eclesiástica e de acordo com o direito canónico, com reconhecimento automático pelo Estado. Este reconhecimento de uma ordem jurídica estranha à República portuguesa é um privilégio católico criado pela Concordata, que torna a ICAR num Estado dentro do Estado português.
6. Criticam também a cláusula respeitante ao ensino de Educação Moral Religiosa Católica (EMRC), que obriga o Estado a garantir as condições necessárias para o ensino da mesma. Considera que deveria existir antes uma disciplina que abordasse as questões religiosas de uma forma imparcial?
Não, ensinar religião (ou várias religiões) não é uma obrigação do Estado, é uma liberdade das comunidades religiosas. A escola deve sim formar os futuros cidadãos para a cidadania, para os valores constitucionais e para a convivência com as diferenças. As comunidades religiosas podem transmitir os seus valores através das suas próprias organizações, não através do Estado. À escola cabe ensinar a ciência e não difundir a fé.
Acrescente-se que a Concordata impõe que a ICAR nomeie directamente professores para a escola pública contratar, um privilégio que não é concedido a mais nenhuma comunidade religiosa.
7. Entre os argumentos, criticam o artigo 22º da Concordata que obriga o Estado a conservar, reparar e restaurar imóveis da Igreja
Católica que sejam considerados monumentos nacionais ou imóveis de interesse público. Deve o Estado desonerar-se de tal, mesmo possuindo esses imóveis um elevado valor histórico e cultural?
Trata-se de edifícios que pertencem ao Estado, que os mantém e sustenta, e que a ICAR utiliza sem qualquer encargo, gerindo esses espaços estatais. Na prática, é um subsídio à manutenção de lugares de culto que são exclusivamente católicos.
O Estado não deve desinteressar-se de manter espaços que são seus, mas a sua gestão não deve ser eclesiástica e o Estado pode exigir contrapartidas pela utilização desses espaços.
8. Sabemos que o Estado e as Autarquias têm vários acordos de cooperação com as Misericórdias, por exemplo, em matérias de âmbito social. Há quem veja com maus olhos depositar-se em instituições religiosas este tipo de responsabilidades, mas também há quem elogie o trabalho social desenvolvido por estas, que por vezes chegam onde o Estado não consegue. O Estado deve deixar, por exemplo, de colaborar com as Misericórdias, em nome da laicidade?
Não. Note-se que as Misericórdias não são instituições obrigatoriamente religiosas, embora por vezes haja essa percepção na opinião pública. São instituições com privilégios estatais que o Estado deve continuar a apoiar, sem tolerar nem impedimentos a que pessoas não católicas aí colaborem, nem o reconhecimento do direito canónico na vida interna dessas instituições.
9. Acredita que a Igreja Católica tem lidado bem com os casos de abusos sexuais? Se não, o que tem de mudar?
A ICAR teve uma atitude complacente e leviana perante o abuso sexual de menores. Mas mais grave é a postura da República, que tem, ao contrário da ICAR, deveres perante todos, e que nada fez durante décadas de democracia para investigar as suspeitas existentes. Cabe-nos a todos nós, cidadãos, mudar a partir daqui a relação entre a República e a igreja historicamente favorecida.
Ricardo Alves
Presidente da Associação Cívica República e
Laicidade