Na sua declaração de princípios aprovada na clandestinidade, o Partido Socialista definiu uma posição clara nesta matéria: “4. Sob o impacto da experiência internacional do socialismo e criticamente atento às suas lições, o Partido Socialista considera como inspiração teórica predominante o marxismo, permanentemente repensado como guia para a acção e nunca concebido como corpo dogmático, e reconhece a validade da contribuição dos cristãos empenhados na luta pelo socialismo”.
No que se refere à Juventude Socialista, como tem sido justamente referido pelo primeiro líder da Juventude Socialista, Alberto Arons de Carvalho, ”Para a criação da JS, contribuiria igualmente um importante grupo de jovens originários de sectores católicos progressistas ligados à Juventude Universitária Católica (JUC), nomeadamente José Leitão e Margarida Marques, cujos primeiros contactos e participação nas actividades dos jovens socialista se concretizaram no início dos anos 70.” (Socialismo no Século XXI, Esfera do Caos, 2010).
Para estes militantes, o debate entre cristianismo e socialismo, e entre cristianismo e marxismo, era algo que já tinha levado a uma conclusão: a adesão ao socialismo democrático e, pelo menos para muitos deles, a identificação com a corrente neomarxista (para usar a categorização das principais correntes que convergiram no do PS e que António Reis faz no seu ensaio “O Marxismo e a Revolução Portuguesa”(Edições Portugal Socialista, 1979, pp.35-39).
Como aconteceu com o Partido Socialista, a Juventude Socialista transformou-se rapidamente depois do 25 de Abril num grande movimento de massas, a organização de juventude do maior partido português.
À Juventude Socialista afluíram militantes com as mais diversas origens e formações políticas, com as mais variadas conceções, desenvolvendo-se naturalmente os mais animados debates.
Tudo estava em discussão: diferentes perspetivas sobre o socialismo e o marxismo, sobre a social-democracia e a revolução de outubro, o MFA, a guerra colonial e a descolonização.
Em 29 de outubro de 1974 realizou-se um interessante colóquio sobre cristianismo e socialismo, com a participação de Frei Bento Domingues, o.p.
O debate foi preparado com textos de apoio policopiados editados pela Juventude Socialista, de que reproduzimos a capa, em que se anunciava a participação de Bento Domingues.
Apesar de terem chegado tarde à sessão, foram vendidos com sucesso os Cadernos 1 e 2 editados pela Multinova sobre Cristianismo e Marxismo, segundo as notas que conservei da sessão.
Os Textos de Apoio 1 consistiam num excerto de uma entrevista com Paul Blanquart, filósofo e sociólogo, antigo dirigente estudantil católico francês, que esteve muito empenhado na revolução de Maio 68, e de Juan Luís Segundo, um filósofo e teólogo da libertação uruguaio, para além de algumas indicações bibliográficas.
Paul Blanquart e Juan Luís Segundo, com abordagens diversas, coincidem na conclusão de que é perfeitamente possível ser cristão e marxista.
Paul Blanquart explicava em que medida se considerava marxista, e em que considerava que a sua fé não era posta em causa pela crítica marxista da religião, defendendo a necessidade de separar o que designava por sociologia marxista de algumas opções filosóficas materialistas, que, em seu entender, deviam ser dissociadas para o próprio desenvolvimento do marxismo.
Juan Luís Segundo lê criticamente a aplicação do conceito de ideologia pela sociologia marxista aos fenómenos religiosos, sublinha, apoiando-se em Engels, que Marx não tinha falado nunca em determinismo económico, mas sim em determinação “em última instância” da superestrutura por fatores económicos.
Mesmo falhos do necessário suporte da ciência social, com o contributo dos antropólogos, o teólogo e filósofo Juan Luís Segundo conclui que, seja como for, “o problema está posto de forma aguda, desde que a teologia latino-americana aceitou o desafio de ser eficazmente libertadora”.
Bento Domingues foi espantoso de pedagogia, lucidez e combatividade para usar as expressões que utilizei na carta, datada de XX?, em que dei conta da iniciativa à Cristina Clímaco, com quem namorava e com a qual viria a casar. É graças a essa carta que me é possível datar com rigor a realização do colóquio.
Como em várias intervenções que fez nessa época sobre cristianismo e socialismo (de uma delasconservo o manuscrito), Bento Domingues explicou porque fazia sentido ser católico e socialista, contra as suspeitas que esta dupla condição suscitava à direita e à esquerda entre católicos ou ateus.
Sei, no entanto, que para algumas pessoas é sempre suspeito reunir a qualidade de católico e socialista. Segundo dizem, ou a qualidade de católico ou a qualidade de socialista fica mal servida. No caso de serem ambas as qualidades levadas a sério, ficam mal as duas. Esta é uma convicção partilhada por grupos tanto da direita como da esquerda, digam-se católicos ou ateus.
Sublinhou, nomeadamente, que muitas pessoas já venceram a barreira. E venceram-na sem traição nenhuma à fé católica, dando-lhe pelo contrário, densidade histórica nas lutas pelo socialismo. É evidente que certas deformações da expressão da fé cristã produziram um catolicismo fanático, sectário, farejando heresias, incutindo medos e receios na invenção do futuro, alimentando com fórmulas e ritos mágicos a evasão das responsabilidades na transformação da sociedade, explicando e justificando assim a dominação da burguesia sobre os trabalhadores. Um catolicismo assim é inimigo da construção da democracia socialista. Mas antes de ser inimigo do socialismo é já um inimigo do verdadeiro catolicismo porque este é ou deve ser a expressão da incarnação da paixão libertadora de Deus em Jesus Cristo. E portanto uma fonte, não de resignação, mas de indignação, em face de tudo o que estraga a vida dos homens e das mulheres .
Há muitos pontos negros na história da Igreja. Não é apenas a Inquisição. Mas os católicos não se podem contentar em confessar esses pecados e crimes. A emenda que lhes é pedida é fazer da Igreja a pátria da liberdade, espaço de acolhimento do Cristo Libertador e do Espírito de Deus que faz novas todas as coisas no dizer do Apocalipse. Na medida, porém, que os católicos se libertam não estão interessados em contribuir para um “socialismo” dogmático, totalitário, burocrático que trata como “inimigos da classe operária” quando se atrevem a discordar da linha política, económica ou cultural do Estado. Não por recusar o socialismo mas por recusa as suas deformações.
Estiveram presentes militantes do PS, na média com quarenta anos de idade, e militantes da Juventude Socialista, entre os quais quatro membros da então Comissão Executiva de Lisboa da Juventude Socialista: Margarida Marques, João Cília, Vítor Gil e eu próprio. Segundo as minhas notas, foi o Cília que colocou as questões mais pertinentes. Muitos camaradas continuaram no final a conversar com ele sobre o cristianismo e o socialismo.
Recorde-se que este debate ocorreu antes da Assembleia Nacional de Delegados, que teve lugar na Costa da Caparica em 8 e 9 de novembro de 1974, e que reuniu mais de uma centena de militantes de quase todo o país, tendo elegido uma Comissão Nacional e um Secretariado Nacional Executivo.
Permitam-me uma constatação: quando sazonalmente se anunciam como se fosse algo de novo um qualquer diálogo sobre o cristianismo, socialismo e marxismo, poderemos dizer que também nesta matéria a Juventude Socialista leva de avanço todos os quase 50 anos da sua existência. Aliás, esse debate já era muito familiar aos militantes da Juventude Socialista dessa época, originários da JUC-Juventude Universitária Católica.
José Leitão
Fundador do Jovem Socialista