Autocrítica

Não podemos ter vergonha em evidenciar os bons resultados da nossa governação e em defender o legado francamente positivo que deixamos ao país, mas a atitude que nos cumpre ter é a de reconhecer, analisar e corrigir com humildade e de forma aberta os erros e lacunas da nossa governação.

Ponto prévio: é preciso saber fazer esse exercício de autocrítica, mas é também importante não o confundir com um exercício de autoflagelação destrutivo de apontar dedos e ficcionar culpados. A autocrítica pode até ser brutal, mas tem de ser construtiva.

1.Não fomos capazes de travar a trajetória de turistificação da economia portuguesa (e, por vezes, até a encorajámos). Se por um lado, o turismo teve um papel importante na retoma económica do país e na criação de emprego, por outro lado, o excessivo afunilamento neste setor imprevisível e volátil transporta consigo riscos preocupantes: os empregos mal remunerados, sujeitos à sazonalidade e incapazes de reter a mão de obra qualificada, a gentrificação e proliferação dos alojamentos locais como externalidades que acentuam a crise na habitação, o aumento generalizado do custo de vida nas zonas de maior pressão turística, entre outros.

2.Resposta exígua à crise da inflação, muito devida à má compreensão do fenómeno e à adesão ao mito da “espiral inflacionista”. As energéticas, os retalhistas e os bancos apresentavam lucros astronómicos, cuja única explicação possível recaía sobre um sórdido aproveitamento da crise e das dificuldades pelas quais muitos trabalhadores e muitas famílias passavam e passam. Não tivemos coragem para impor tetos máximos no setor da energia e impor limites nas margens de lucro. Podíamos e devíamos ter ido mais longe no acordo de rendimentos.

3.Inflexibilidade perante reivindicações justas de algumas classes profissionais. No lugar de cedências, fizemos um braço de ferro. O PS poderia ter aceite a reposição gradual e faseada do tempo de serviço dos professores, bem como de todos os funcionários públicos, de forma a não gerar situações de injustiça relativa como as que se verificaram mais tarde com o aumento do subsídio de risco à PJ, sem que fosse feito na PSP e GNR. Outro erro.

4.As pequenas-grandes frustrações com o Estado que podíamos ter resolvido. A aplicação das restrições impostas pela pandemia nos serviços de atendimento para além da sua revogação, desde as repartições de finanças aos tribunais, provocando longas filas de espera. As dores de crescimento de algumas reformas, como foi o caso dos transportes públicos nas áreas metropolitanas, em que muitos passageiros se viam impedidos de chegar ao trabalho por faltar o autocarro ou este vir cheio. Casos que se prolongaram para além do razoável, sem prejuízo dos indicadores positivos que hoje temos.

5.Níveis de investimento aquém dos resultados, em particular na saúde. Apesar do forte investimento que foi feito no SNS, tanto nos meios como na contratação de médicos, enfermeiros e auxiliares, a aposta foi insuficiente ou pelo menos inadequada. Os problemas crónicos do SNS acabaram por suplantar os resultados positivos no número de consultas e cirurgias. Sentiu-se a falta de médicos nos elevados tempos médios de espera em alguns centros de saúde e hospitais. O recurso excessivo à contratação externa de médicos tarefeiros revelou-se um estorvo nas despesas da saúde, quando essa despesa deveria ter sido direccionada para a criação de melhores condições salariais e de carreira para os médicos do SNS. Tardaram medidas que determinassem e incentivassem a dedicação exclusiva dos formandos.

6.Resposta insuficiente ao problema da habitação. Não obstante as políticas de habitação do PS terem apontado na direção correta, com vista a aumentar o parque habitacional público, a execução ficou aquém das expectativas criadas. Não foi colocado um travão à subida dos preços do arrendamento, favorecendo-se antes soluções de contenção do impacto financeiro na vida das famílias por via dos subsídios aos arrendatários, que em última análise são verdadeiros subsídios aos senhorios.

Reconhecer os erros demonstra sentido de responsabilidade e não diminui o valor das nossas conquistas. Não façamos um drama exagerado sobre uma derrota eleitoral e a alternância do poder, que é normal e saudável em democracia. Afinal, este foi o período de governação mais duradouro da história do Partido Socialista. É certo que muitos dos que confiaram no projeto do Partido Socialista há dois anos não renovaram esse voto de confiança nestas eleições. Estão desiludidos e frustrados com um sistema económico que não lhes permite ter salários dignos, casas para morar e perspetivas de futuro para si e para as suas famílias. Mas o PS pode recuperar este eleitorado com políticas que visem a profunda transformação da economia portuguesa e um papel mais interventivo do Estado para corrigir assimetrias e desigualdades, que são a fonte desse descontentamento.

Diogo Vintém

Diogo Vintém

Diretor do Jovem Socialista